9.1.05

 

Apontamentos Linguísticos Suscitados pelo Maremoto do Sudeste Asiático

A tragédia no sudeste asiático, com o seu cortejo de vítimas humanas, que não tem parado de aumentar, acabou, por arrastamento, por obra dos humanos e não pela mão da natureza, por gerar mais uma vítima, num campo, aparentemente, não relacionado com a catástrofe. Refiro-me ao campo cultural, mais especificamente, ao da Língua Portuguesa, nossa mui excelsa e prezada dama.

Primeiro, logo no que concerne aos termos para designar o fenómeno ocorrido.

Subitamente, os jornalistas portugueses, como amiúde sucede, deixaram-se logo deslumbrar com uma palavra estrangeira, tsunami, que apesar de originária do Oriente, japonesa, nada de extraordinário tem. Designa tão-somente, ao que consta, uma onda de porto, da costa, subentendendo-se, de proporções inusitadas, porque as outras, certamente, não merecerão essa designação.

Durante os primeiros dias, ninguém da Comunicação Social parece ter-se lembrado do nosso velho vocábulo maremoto, com explicação simples, imediatamente compreensível :

maremoto, s.m. (geogr.) grande agitação das águas marítimas por vibrações sísmicas, erupções vulcânicas submarinas e fenómenos de abatimento do fundo que originam ondas solitárias ; invasão da costa e do litoral pela onda solitária devastadora, o m. q. rás de maré ( do lat. mare - , « mar » + motu - , «movimento ),

fornecida aqui pelo excelente, mui prático e generalista, Dic. da LP, da Porto Editora, 6ª Edição, mas que pode igualmente encontrar-se em qualquer outro Dicionário da LP, português ou brasileiro : do Morais, ao do Torrinha, ao do Augusto Moreno, ao do Cândido de Figueiredo, ao do José Pedro Machado, ao da Academia, ao do Aurélio, ao do Houaiss, etc., etc.

Todos dão a definição tradicional de maremoto, com mais ou menos pormenores explicativos, que, como vemos, se ajusta plenamente ao fenómeno ocorrido no sudeste asiático, no passado dia 26 de Dez. do ano que findou.

Os nossos poliglotas jornalistas, porém, não se mostraram satisfeitos com a vulgaridade. Se o fenómeno tinha acontecido na Ásia, haveria que procurar-lhe outro nome e o de tsunami merecia-lhes uma alta receptividade, não só por razões geográficas, mas, quiçá, pela própria eufonia do termo.

Só alguns caturras da blogosfera, principalmente, começaram a levantar a questão da propriedade e da equivalência dos termos, com umas pequenas diferenças de matiz, no máximo, que nunca invalidariam, no caso, o uso do vetusto vocábulo da Língua Portuguesa.

Mas não ficaram por aqui as questões linguísticas suscitadas. Eis que passámos a ouvir falar da ilha de Samatra/Sumatra, das Molucas/Malucas e Ceilão/Sri Lanka, Colombo/Columbo, etc. E aqui as coisas complicaram-se, porque as divergências pareciam mais variadas e as autoridades na matéria mais difíceis de convocar e de acatar.

Em particular, no que se refere a estes dois primeiros termos, logo se revelaram inesperadas autoridades na matéria.

Por ter ouvido e lido tanta coisa errada ou mal explicada, resolvi efectuar uma pequena pesquisa, aqui, pela minha prestimosa biblioteca, que não sendo muito opulenta, abriga já uma quota de saber considerável e, o que é mais consolador, está sempre disposta a fornecer a sua generosa colaboração, nunca se fazendo rogada naquilo em que pode socorrer-me.

Para estas coisas, o google é pouco prestável. Haverá ainda muito trabalho a desenvolver, por parte dos falantes do português, para que ele possa responder às nossas necessidades culturais específicas.

Apesar de ter de memória algumas destas coisas, por as ter ouvido, há muitos anos, da boca de quem muito disto sabe e com quem sempre ganhamos em associar-nos, porque logo, quase sem esforço, fazemos diminuir a nossa quota de ignorância, como, socraticamente, devemos presumir o nosso permanente estado natural, a respeito de muita coisa, por mais estudos que empreendamos.

No caso vertente, refiro-me a um ilustre estudioso destes assuntos histórico-linguísticos, que é o meu mui prezado ex-Professor de Português, o Dr. José Pedro Machado, académico estudioso, ( não é pleonasmo, sobretudo, nos dias de hoje ) de várias prestigiosas instituições, felizmente ainda vivo, com a bonita idade de 90 anos.

Tem larga obra publicada nestas matérias, alguma mesmo pioneira e sem continuadores até ao presente. O seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa veio a público, pela primeira vez em 1952, sofreu várias reedições, mas, que eu saiba, mais nenhum nosso compatriota teve a boa iniciativa de retomar este trabalho de tomo, de então para cá, apesar da proliferação de meios humanos ( Doutores, Mestres, Licenciados ), de equipamentos ( Computadores, Máquinas de Fotocópias, Digitalizadores ) e de verbas (do Ministério da Educação, da Ciência, da União Europeia, da Fundação Gulbenkian, etc. ).

Apenas no Brasil, terra onde não há só telenovelas, samba e futebol, apareceram Dicionários Etimológicos, dando seguimento ao também pioneiro trabalho do grande Mestre Antenor Nascentes, de que J P Machado foi, aliás, amigo dilecto e de cujo trabalho recebeu natural influência.

Há tempo que ando com a ideia de deixar aqui uma singela homenagem a este meu estimado ex-Professor, figura de enorme valor humano, tanto no saber, que é imenso, como no plano ético e no da cidadania, que só a prudência e a modéstia, valores por si cultivados em alto grau, mas com pouca cotação na época actual, têm contribuído para o seu escasso conhecimento popular, apesar da sua diuturna colaboração na imprensa, nacional e regional.

Faltou-lhe, certamente, a consagração da Televisão, para o tornar conhecido do grande público.

Até hoje e depois de tanta futilidade ter sido condecorada, no 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, nunca nenhum Presidente, da nossa desconcertante República, se lembrou de lhe atribuir uma merecida distinção, ele que, até em Camões, tanto estudo investiu, sendo um profundo conhecedor da sua obra.

Em contrapartida, temos visto condecorar, centenas, talvez milhares, de figuras de tão comprovados escassos méritos e duvidoso comportamento ético, excepto na arte de estabelecer compadrios, que, para isso, sempre acham vocação alentada.

Fica, por isso, aqui assumido o compromisso de lhe lavrar um mais que merecido panegírico, em data próxima. Será uma forma de publicamente lhe manifestar o meu grato reconhecimento pela sua benfazeja acção pedagógica, de largo percurso e nas mais variadas tribunas que se lhe ofereceram ao longo da sua felizmente extensa vida.

Quanto aos termos investigados, apurei que a forma escrita geralmente consagrada, pelos vários especialistas e estudiosos que se têm dedicado a estes assuntos, para designar aquela grande ilha do Arquipélago de Sonda, na Indonésia, é Samatra e não Sumatra, aparecendo nesta grafia desde o início do século xvi,i.e., escrita com um a e não com um u.

Em muitos e variados sítios podemos confirmar a maior antiguidade do termo Samatra, desde o referido Dicionário Etimológico de JPM, ao Dic.Onomástico Etimológico da LP, do mesmo autor, à Enciclopédia Luso-Brasileira da Verbo, ao Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, a uma considerável lista de autores antigos e modernos e respectivas obras, de que citarei apenas os principais :

Começando pelo Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, edição de 1947, da Atlântida, Livraria Editora Lda, de Coimbra, lá vem, na pág. 364, em anotação, a adução de provas do uso antigo e primeiro da grafia Samatra.

Só muito depois, por influência inglesa, que, de o ouvirem da boca de portugueses, certamente, dado que o Português foi, durante o século xvi, uma espécie de «língua franca» de uso geral, naquela parte do mundo, em que quase todos se entendiam, no mercadejar praticado, é que o termo Sumatra, com u, apareceu.

Coisa compreensível, para os ingleses, que, para aproximarem da sua pronúncia o termo que ouviam dos portugueses, assim o grafaram, como sucede com termos prosodicamente semelhantes, como summer, sunday, sun, etc., todos escritos com u e lidos com o som â.

Aí se fica também a saber que o vocábulo aparece logo grafado Samatra, no Livro de Duarte Barbosa, navegador português, que por essas partes do mundo jornadeou no início do séc. xvi.

Em 1516, terminou Duarte Barbosa de escrever esse verdadeiro relato das viagens que empreendeu pelo Índico, onde adquiriu largos conhecimentos, que depois lhe seriam muito úteis, na empresa de Fernão de Magalhães, outro português que, ao serviço de Espanha, haveria de fazer a primeira circum-navegação do globo terrestre, de quem Duarte Barbosa era, aliás, cunhado, tendo sido por ele contratado, juntamente com outros experimentados homens do mar portugueses, para tão arriscada missão.

Desgraçadamente, nessa fantástica viagem, os dois notáveis portugueses viriam sucessivamente a morrer, primeiro Magalhães, depois Barbosa, por forma idêntica, não sem antes deixarem indelevelmente assinalada a sua presença na História dos Descobrimentos Marítimos.

Também o historiador quinhentista, João de Barros, usou, nas suas Décadas, o termo Samatra e não Sumatra, da mesma forma que António Galvão, no seu Tratado dos Descobrimentos, impresso em 1563, Garcia de Resende, na sua Miscelânea, Sá de Meneses, em Malaca Conquistada, Camões, nos Lusíadas, Canto x, est. 124, Fernão Mendes Pinto, na Peregrinação, Manuel Bernardes, na Nova Floresta, etc., etc., tudo autores e obras dos séculos xvi e xvii.

É, por conseguinte, a forma preferida e mais utilizada pela grande maioria dos nossos clássicos, figurando algumas vezes com grafias ligeiramente alteradas - Camatarra, Çamátara e outras - mas com um a inicial.

Modernamente, quase todos os estudiosos que se têm ocupado de assuntos correlatos, em Portugal e no Brasil, têm manifestado a mesma preferência por Samatra : Gonçalves Viana, Cândido Figueiredo, David Lopes, Rebelo Gonçalves, José Pedro Machado, Silveira Bueno, António Houaiss, etc. Estes dois últimos, insignes estudiosos da Língua Portuguesa, ambos brasileiros.

Em particular, Silveira Bueno foi um grande amigo de Portugal e um profundo conhecedor de assuntos nossos, como o provou, nas muitas obras que escreveu, no domínio da Filologia, da Literatura e da História.

Permito-me destacar aqui duas delas : o seu Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, em 9 volumes, e uma sua edição de «Os Lusíadas», profusamente comentada, com um acervo de conhecimentos anotados, de várias disciplinas complementares ao estudo da obra, nas áreas da Filologia, História Antiga e Moderna, Literatura, Geografia, Mitologia, etc., cuja leitura a todos extraordinariamente enriquece.

Escusado será dizer que, muitas vezes já, consultei ambas as obras sempre com renovado prazer e seguro proveito.

Naturalmente, não pretendo exaurir aqui matérias tão vastas e tão disputadas, nem teria a competência requerida para o fazer, mas apenas veicular o que nelas me parece mais verosímil, daquilo que conheço, permanecendo sempre disponível para corrigir a minha presente opinião, em face de argumentos porventura mais convincentes.

É esta, julgo eu, a única atitude saudável perante o erro, em qualquer domínio do saber em que nos achemos.

Todavia, como o saber é sempre relativo e o silêncio dos mais prudentes estimula a ousadia dos menos preparados, aqui me vejo, nesta incómoda mas excitante situação, de quem sente que está pisando terreno alheio, colhendo onde não semeou e no qual só por puro recreio filosófico, em sentido etimológico, tenho entrado.

Para minha grata satisfação, sinto que já arrecadei algum estimável e consolador pecúlio, que, modestamente, sempre, a todos aqui patenteio.

Ficará ainda para novo «excurso filológico» a dilucidação de termos igualmente disputados, como o do Arquipélago de Maluco, das Ilhas Malucas ou Molucas, do dito elefante Jumbo, da Ilha de Curaçao/Coração, da Florida/Flórida e outras curiosidades, verdadeiras bizantinices para alguns espíritos mais práticos, para uns, porventura mais rombos, para outros.

Pauca sed bona/ Poucas coisas mas boas

AV_ Lisboa, 09 de Janeiro de 2005




Comments:
E, tal como na política, a comunicação social, independentemente da forma como é exercida, também passou a ser vista como um palco ou uma feira de vaidades.
É de uma tristeza deprimente tudo isto a que assistimos.
Mas não desesperemos. Continuo a acreditar que há um limite além do qual não se pode descer, por isso, nem que seja doloroso, havemos de dar o salto qualitativo.
Abraço,
DespenteadaMental
 
António, trazendo, aqui, a resposta que dei, lá:
- Proponho, até, que se crie um fundo de subsistência, a ser financiado, voluntariamente e a fundo perdidíssimo, pelos cidadãos, para que o homem, a partir de 20 de Fevereiro, tenha do que viver, sem fazer nada, porque, calado e quieto, ajuda muito mais. Se você se propuser como tesoureiro, eu proponho-me, já, como 1ª contribuinte. Assim, pelo menos, sei quanto ele me custa...
Abraço,
DespenteadaMental
 
BRAVÍSSIMO, António! Também vivo consultando livros e dicionários, de minhas estantes abarrotadas de volumes que, como os seus, vivem a me prestar socorro em minhas inúmeras dúvidas. Por aqui, também o nome da tal onda é repetido sem parar, não só o nome, mas as imagens também.
Muito oportuno este post. Pena que não seja tão divulgado como a onda, fruto do maremoto, salvo engano. E quem também se preocupa com nosso idioma? Consultar dicionários? (Acho que somos dois alienígenas. Quem, tendo computador, abandonaria os "sites" de busca que, em poucos segundos, oferecem milhares de opções impossíveis de serem sequer consultadas, quanto mais seu conteúdo absorvido, e buscaria seus dicionários? Resposta: EU e VOCÊ, que eu saiba).
Cumprimentos a seu "mui prezado ex-Professor de Português, o Dr. José Pedro Machado".
Se a conexão permitir, olharei seus textos que ainda não vi, mas ler este texto foi um bálsamo para minhas "pequenas" revoltas.
ABRAÇOS,
Bisbilhoteira.
 
CONSEGUI! Conforme anotei aqui em meu caderno (6º volume), comentei os textos abaixo: 16/12/04, 22/12/04, 28/12/04, 30/12/04, 2/1/05.
Foi um prazer.
ABRAÇOS,
Bisbilhoteira.
(www.bisbilhotices.blogger.com.br).
 
António, concordo com a sugestão que me deixou - deve ser um caso de doente neurológico em descompensação. Será que ainda está na fase passiva?...
DespenteadaMental
 
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